ElekistãoTV – Elekistão http://elekistao.blogfolha.uol.com.br Notas sobre o universo cultural e adjacências Tue, 19 Nov 2013 04:14:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Clarice Lispector de almanaque http://elekistao.blogfolha.uol.com.br/2013/10/26/clarice-lispector-de-almanaque/ http://elekistao.blogfolha.uol.com.br/2013/10/26/clarice-lispector-de-almanaque/#comments Sat, 26 Oct 2013 02:45:32 +0000 http://elekistao.blogfolha.uol.com.br/?p=677 Continue lendo →]]> Se num vestibular, numa rodada de “Master” ou no “Show do Milhão” você tivesse que identificar o autor da citação a seguir dificilmente tascaria o X no lugar certo (com ou sem ajuda de universitários). “Minha garotinha está sempre derramando suco de frutas sobre as toalhas de mesa. Há algum meio de resolver essas marcas tão desagradáveis?  Goma em pó aplicada imediatamente costuma remover essas marcas tão desagradáveis”.

Alessandra Maestrini, em cena de “Correio Feminino”, série inspirada em Clarice Lispector

Believe-me, trata-se de um legítimo Clarice Lispector, de 1959, quando a autora já havia publicado três romances, incluindo “Perto do Coração Selvagem”. Mas, verdade seja escrita, também não é um legítimo Clarice Lispector. Ela o escreveu, sim, mas sob o pseudônimo de Helen Palmer, para a coluna “Correio Feminino – Feira de Utidades”.

Este “almanaque” feminino, que a autora publicou por três anos no jornal “Correio da Manhã”, agora ganha as TVs de todo o país.  Os textos de Palmer (e outros que Lispector publicou sob as alcunhas de Teresa Quadros e de Ilka Soares, neste caso como ghost writer da atriz) são a fonte de inspiração da série “Correio Feminino”, que o Fantástico exibe a partir de amanhã (27), na Globo.

Estrelada por Maria Fernanda Cândido, Cintia Dicker, Luiza Brunet e Alessandra Maestrini, a série em oito episódios foi concebida e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, responsável por mais de uma dúzia de grandes adaptações de boa literatura brasileira para TV e cinema. Sob o pseudônimo de Folha, o Elekistão entrevistou Carvalho por e-mail. E a íntegra da conversa segue abaixo.

Cintia Dicker, no estilo “bem verão”, em cena de “Correio Feminino”

Você tem um trabalho consistente de adaptação do melhor da literatura brasileira, de Machado de Assis a Raduan Nassar. Embora Clarice Lispector esteja na ponta de qualquer cânone brasileiro sua “heterônima” Helen Palmer nunca foi um projeto de ambição literária. Como foi o desafio de trabalhar neste registro?

Sou leitor de Clarice há anos, não apenas de seus romances, mas de suas correspondências e contos, e confesso que só há pouco tempo me deparei com sua fase jornalística: um universo híbrido, um gênero novo e consequentemente uma forma nova para mim, uma espécie de jogo de esconde-esconde da escritora com ela mesma. Procurei entender quem exatamente estava diante de mim. Não era Clarice, a pessoa física, como alguns pensam, expondo-se em linguagem natural e direta por meio de cartas às redações dos jornais. Era, sim, mais uma de suas criações — Helen Palmer —, onde, mais uma vez, as fronteiras que delimitam o espaço afetivo entre vida e obra encontrava-se pulverizado. Não aceito a condenação de alguns, que, no intuito de derrubar os almanaques em relação a seus grandes romances, não o enxergam como produção digna da obra de Clarice. É preciso ler mais uma vez os almanaques sem o preconceito de um gênero de época. Clarice está em tudo, até mesmo a verve da escritora de “A Paixão Segundo G.H.”, em um jogo quase metalinguístico, a um só golpe distanciado e próximo. Então o maior desafio foi o de não aceitar a pecha de subliteratura, percebendo com alegria, sim, por que não?, o rigor e a delicadeza dela ao tratar de temas aparentemente tão triviais.

Você tem diversos trabalhos centrados no universo da mulher, mas “Correio Feminino”, o nome já indica, é o mergulho mais radical nesse sentido. De que modo essa experiência te ajudou a refletir “afinal, o que querem as mulheres?”?

Não passo de um aprendiz de observador do humano e, como você sabe, há muitos mistérios insondáveis nesta seara. Não será em um único trabalho que daremos conta de (confesso!) certas obsessões. Também não precisaria ir aqui muito além, o feminino está presente em toda a história da arte. Não colhi respostas satisfatórias ou finais em meus trabalhos anteriores. O feminino me traz um sentido de natureza, de força primordial, lugar onde preciso voltar sempre, meu cosmo, minha placenta espiritual, de onde puxo o novelo — ou seria o cordão umbilical? Pouco importa, de lá vou puxando tudo! Afinal, o que querem os homens? Os adolescentes? As criança? O que quer o dono de banco, o pedreiro, a bailarina, os professores? Afinal, o que quer o ser humano?

Existe uma crítica bastante comum no universo acadêmico à identificação exacerbada de Lispector com o rótulo de “literatura feminina”. Até que ponto isso representou uma preocupação para ti ao adaptar o que há de mais escancarado “feminino” (ainda que não sob o nome de Lispector) da produção dela?

Esta visão nunca me atrapalhou, talvez por nunca ter lido sua produção através deste viés, sem dúvida nenhuma, limitador. Em “Correio Feminino” procuramos fazer um recorte segundo o qual a atemporalidade dos temas fosse preponderante ao cotejarmos com o feminino de hoje; ou seja, capítulo a capítulo, lançaremos a mesma pergunta: as mulheres dos 1960 para cá permaneceram as mesmas? Grandes avanços aconteceram, mas me parece que muitas questões continuam abandonadas. Em que aspectos evoluíram? Em que aspectos estacionaram? Sem falar que o que se convencionou chamar de feminino me parece hoje algo muito mais amplo, são questões que vão além das mulheres, como disse antes, elas alcançam e representam questões humanas e sociais mais abrangentes, transpassando até mesmo a ideia dos gêneros. O feminino está em tudo: na delicadeza, na ética, na criação. Não ha nada no mundo que não passe pelas coordenadas míticas do feminino e suas transformações insondáveis. E isto, no meu modo de sentir, é pura Clarice.

Luiza Brunet se enfeita em cena de “Correio Feminino”

Ainda que a série tenha elementos de época, como câmeras, microfones, rádios, vestuário, a linguagem visual parece bastante contemporânea, tanto na luz, quanto em recursos gráficos como a divisão de telas e o uso das cores. Isso foi intencional? Até que ponto o conselho para a mulher dos anos 1960 faz sentido para a mulher de 2013?

É uma reflexão para os espectadores. Não acredito em verdades absolutas, é apenas um papo. E um papo pop, no sentido de uma cumplicidade entre amigas, confidentes, mas em um tom de almanaque, ou seria de Facebook? Não seria muito diferente do que acontece em alguns sites e blogs de hoje: modernos, mas com um sentimento e sem perder o estilo. Questões ligadas ao afeto, às relações e aos cuidados consigo mesma podem nos parecer mais coladas aos dias de hoje, mas me parecem eternas. Foi divertido cotejar estes espaços da subjetividade feminina, criando um diálogo não só entre épocas, mas, principalmente, entre as convenções do que vem sendo denominado historicamente como feminino .

Quando sugeri escrever sobre a série, o chefe de reportagem da “Ilustrada” me respondeu: “Legal, é uma série com cores meio Almodóvar, não?”. Você tinha o cineasta espanhol (ou algum outro em especial) em mente quando concebeu o projeto? 

Não, não (risos). Mas há uma coincidência engraçada aí! Numa conversa ontem eu clamava pela necessidade de um olhar mais feminino na produção audiovisual brasileira. O Brasil conviveu, desde sempre,  com cineastas brilhantes, mas sinto falta desse olhar. E não quero dizer com isso que este olhar tenha que vir necessariamente de uma cineasta, poderia surgir de um cineasta, como o Almodóvar, eu dizia. Mas não. Não recorri a ele como referência. Minhas pontes foram com a propaganda de revistas femininas da época, que, por sua vez, já continham muitas cores e um excelente design.

A coluna de Clarice tinha o subtítulo “Feira de Utilidades” e um caráter de “almanaque”, feita de pequenas notas de variedades. Como foi a adaptação destes fragmentos, curtinhos, numa narrativa mais extensa?

De saída, gostaria de sentir a voz de Clarice falando para gerações diferentes. Isso traria uma dinâmica narrativa ao programa. Então imaginei as três idades. Depois, chamei a Maria Camargo para recortarmos os fragmentos que mais nos interessavam e criar o texto final. Foi então que imaginei uma narrativa sem contracampo, fluida, musical, que dispensaria portas e janelas, cenários, ruas, todo aquele vocabulário naturalista, elevando a linguagem a um exercício narrativo que privilegiaria a voz de Helen Palmer. O cenário é a voz. Ela criaria um contraste com elementos clássicos da construção das imagens, como as cores, a luz e os figurinos. Desde sempre pensei que apenas precisaríamos dar tridimensionalidade a um almanaque, com um certo sopro de modernidade, claro.

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