O silêncio puro-sangue
25/04/13 15:29Estes dias o “New York Times” alardeou que nove cartas de juventude de J.D. Salinger tinham sido compradas pelo Morgan Library & Museum, e sobre elas publicou uma reportagem (que você pode ler aqui).
Depois de mais de duas semanas sem poluir a grande rede com nenhuma de suas considerações, arrazoados e carraspanas, o Elekistão não poderia abraçar-se a outro tema que não o silêncio.
Jerome David Salinger (1919-2010) foi um puro-sangue do silêncio.
Tenho o mais sincero respeito por: a) escritores que em algum momento deixam de escrever; b) escritores que não falam sobre o que escrevem, com a imprensa ou com quem quer que seja; c) escritores que jamais escreveram nada.
Salinger não teve o prazer de adequar-se ao item “c” (um clássico “c” foi Jayme Ovalle, tema de biografia magnífica de Humberto Werneck, e, em notas relacionadas, o ensaísta francês do século 17 Jean de la Bruyère afirmou: “A glória ou o mérito de certos homens é de escrever bem; de outros, é de não escrever”), mas foi um “a” e um “b” de primeiríssima linha.
Bem que tentaram fazê-lo falar. Certa feita, o escritor e jornalista Ron Rosenbaum montou guarda no vilarejo de Cornish, em New Hampshire, a “aldeia gaulesa” onde o escritor de “O Apanhador no Campo de Centeio” se refugiava. Não deu muito certo, mas Rosenbaum publicou na revista “Esquire” um texto de 70 metros de extensão sobre o episódio, que a Folha reproduziu numa série, em 1997 (leia aqui a apresentação dela).
Houve ainda o fotógrafo que roubou uma foto do escritor, quando este saía de um mercadinho. Não me lembro, de imediato, de um rosto mais assustado. Já octogenário, cabelos brancos e ralos, Jerome David tem a testa franzida por quatro vincos profundos (o medo desenhou gaivotas em sua testa) e se protege com o punho direito, da câmera que aponta para ele em contre-plongée.
Era tudo o que Salinger não queria. Pela voz de seu personagem mais famoso, Holden Caulfield (d'”O Apanhador”), o escritor tinha anotado o seguinte: “Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre bateram palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário.” (pág. 75 de “O Apanhador no Campo de Centeio”). Este era o mais puro mood Salinger.
Por mais que entenda o furor natural causado no “micromundoliterário” pela aparição das cartas de juventude de Salinger (há sede, oceânica, por qualquer escrito do homem, há mais de meio século), secretamente gostaria que as correspondências não tivessem deixado a gaveta da bela sra. Marjorie Sheard, para quem foram remetidas nos anos 1940.
Não digo isso por conta dos aspectos éticos subjacentes à publicação de textos particulares de escritores que já morreram, nem porque, neste caso, elas parecem pouco acrescentar à compreensão de quem foi, o que pensava e como trabalhava este escritor (como ele disse, “as pessoas sempre bateram palmas pelas coisas erradas”). Prezo em especial o silêncio de J.D. Salinger. Não sei explicar o motivo, mas algo me diz que tem a ver com o seu velho e assustado retrato.
Post-scriptum: não há, provem-me o contrário, melhor romance sobre o silêncio literário do que o “Bartleby e Companhia”, de Enrique Vila-Matas. O espanhol, não custa lembrar, parte da obra-priminha de Herman Melville “Bartleby the Scrivener”. É dela, não custa lembrar parte 2, que vem a frase da camiseta que adorna este post, produzida pela ótima editora norte-americana Melville House.
fiquei curioso para ver a tal foto do autor em questão com escondendo o rosto.
Marcio, não reproduzi a foto em respeito ao escritor. Neste site você reconhecerá a imagem descrita: http://www.thebluegrassspecial.com/archive/2010/feb10/salinger-news-notes.php. Abraço
Adorei ler esse texto pois foi uma enorme e grata surpresa descobrir o que pensa desse episódio do aparecimento das cartas . Achei bonito , achei respeitoso de sua parte entenderr o J.D. e seu silêncio e isolamento .
Amei e amo ” O apanhador no campo de centeio ” e também sou fã de Vila – Matas e Melville .
Parabéns pelo texto e postura .