Cow parade
02/05/13 16:44Lydia Davis é o tipo de escritora capaz de fazer um livro inteiro só sobre a maneira como três vacas na sua vizinhança se movimentam no pasto, num dia qualquer.
“É muito frequente que elas fiquem completamente paradas. Mas quando eu volto a observá-las alguns minutos depois, elas estão em outro lugar, de novo completamente paradas”, escreve no livro “The Cows” (Sarabande Books, 2011).
É mais ou menos assim que eu me sinto com relação à incrível ficção desta contista americana, que virá para a Flip deste ano. Seus contos parecem estar parados, ruminando um montinho de capim qualquer. E quando você volta a algum deles, surprise!, estão ruminando um montinho de capim mais acolá.
É ficção das mais finas e, surprise!, finalmente veio ruminar no Brasil. A Companhia das Letras botou nas ruas na semana passada a primeira coletânea de contos de Mrs. Davis, o impecável “Tipos de Perturbação”, precisamente traduzidos por Branca Vianna.
Entrevistei Lydia Davis há um par de semanas, interneticamente, como o leitor mais atento da Folha deve ter percebido (saiu anteontem, assim). Para os demais, engajados na arte de observar vacas, segue o pingue-pongue com a escritora, em versão leventemente ampliada do que a registrada em papel-jornal.
A revista americana “The Believer” publicou uma resenha sobre “Tipos de Perturbação” no qual perguntavam: “Lydia Davis diz mais com o que diz ou com o que não diz”. O que Lydia Davis diria a respeito? Menos é mais ou é só o bastante?
Tento ser tão concisa ou breve quanto posso ao expressar o que quero expressar. Isso é o que eu poderia chamar de “menos”. Mas Proust também acreditava em ser conciso. Se uma frase dele pode durar várias páginas isso não significa que ele tenha dito mais do que ele necessitasse. Há também o papel do leitor: quanto mais ativo ele é, expandindo a história ou compreendendo suas implicações, entendendo aquilo que não foi dito explicitamente, mais satisfeito o leitor ficará.
Poucos escritores são tão ligados ao gênero conto como a sra. Mas a sra. já publicou um romance, curiosamente chamado “O Fim da História” (“story” pode significar conto em inglês). Como foi a experiência de trabalhar em outro formato? A sra. pretende escrever mais romances ou este foi o fim dessa história?
Sou muito satisfeita com o gênero conto. Ele é flexível e versátil e pode levar a muitas direções diferentes. Meu único romance veio da experiência de querer contar uma história que era muito longa para caber num conto. As duas principais dificuldades de escrever um romance foram: primeiro, organizar o material; depois, sustentar de um dia para o outro a vivacidade da voz narrativa. Eu não me importaria de escrever outro romance, e isso ainda é possível, mas no momento estou mais interessada em trabalhar com assuntos de história primária e desenvolver a partir disso uma narrativa de não-ficção.
O crítico da revista “New Yorker” James Wood diz que seus contos compõem uma espécie de autobiografia intelectual e emocional. Quão próxima a sra. se considera da narradora média de suas histórias?
Gosto do comentário de James Wood e, às vezes, gosto de olhar as histórias como se estivessem em ordem cronológica, o que nunca aconteceu, e imaginar que são, de certa forma, uma autobiografia. Mas, por outro lado, ainda que muitas histórias narrem episódios reais ou tratem de algum momento de minha própria vida, elas nunca são exatamente verdadeiras sobre a minha vida, por pelo menos dois motivos: parte dos conteúdos são mesmo inventados ou deslocados de algum outro momento de minha vida ou da vida de outra pessoa e, também, quando alguém seleciona algo da realidade inevitavelmente a distorce.
O que a sra. aprendeu, como escritora, com a experiência de ter traduzido autores como Marcel Proust e Gustave Flaubert?
Um dos grandes prazeres de traduzir é a possibilidade de escrever na minha língua usando a voz e o estilo de alguns dos melhores escritores. Naturalmente, Proust e Flaubert fazem parte deste grupo. Não tenho como saber, em toda a extensão, o que eu aprendi com essas experiências, mas certamente aprendi algo sobre o inglês e suas possibilidades, alguma coisa sobre o francês e sobre as culturas e as épocas nas quais Proust e Flaubert escreveram e nas quais ambientaram seus romances.
Como tradutora a sra. já fez mudanças depois de ter publicado uma primeira versão de uma obra. Você também faz ajustes ou edita seus contos quando eles são reeditados? Como é o processo de “polimento” dessas histórias de maneira geral?
Fiz, de fato, duas versões da minha tradução de Proust e, até agora, uma variante de minha versão de Flaubert. Isso é inevitável: um escritor vê sempre algumas melhorias possíveis em obras tão extensas. Quanto aos meus textos, costumo publicá-los já em suas versões finais. Em alguns casos, faço revisões, as vezes inúmeras revisões, quando vou publicar em livro um conto que já havia saído em uma revista. De maneira geral, do começo ao final, eu trabalho muito no “polimento” das histórias. Em alguns casos, eu continuo mexendo em algumas palavras até eu não enxergar mais nada que possa ser alterado.
A sra. cresceu numa família de intelectuais e diz ter lido livros como “Malone Morre”, de Samuel Beckett, aos 13. Quando a sra. “virou” escritora?
Comecei a pensar seriamente nisso bem cedo, com uns 14 ou 15 anos. Antes disso, eu estava interessada em tocar piano e violino e até escrever as minhas composições. Gosto e sempre gostei de atividades nada literárias, como jardinagem e o estudo de animais e insetos. Mas, ao passo que alguém continue a pensar enquanto pratique estas atividades, elas continuam sendo de alguma maneira intelectuais. E eu não quero parar de pensar jamais.
Em uma entrevista dada ao escritor Rick Moody a sra. disse que é tão obcecada por línguas estrangeiras que, de tempos em tempos, faz uma imersão num idioma que não conheça, como o sueco. A sra. já mergulhou no português?
Tive uma boa experiência com o espanhol, até porque vivi em Buenos Aires quando tinha 17 anos. Consigo ler e já traduzi textos da mexicana Ana Rosa González Matute. Adoraria aprender português e o meu espanhol provavelmente ajudaria. Se você tiver algum bom autor de contos para recomendar adoraria ler e tentar traduzi-lo. Ultimamente tenho estudado holandês.
A sra. já esteve no Brasil? O que espera encontrar por aqui?
Eu passei rapidamente pelo Rio quando tinha 17 anos, a caminho de Buenos Aires, com meus pais. Tenho boas memórias desta viagem, mas isso já faz muito tempo. Estou ansiosa com a possibilidade de revisitar o país, mas não tenho expectativas, portanto eu certamente ficarei surpresa.
A sra. já escreveu um livro só sobre a movimentação de três vacas na sua vizinhança. Em “Tipos de Perturbação” a sra. também toma objetos e disserta sobre eles incansavelmente, da mesma maneira que artistas como o americano Ed Ruscha catalogava postos de gasolina ou que o casal alemão Bernd e Hilla Becher fotografava caixas d’água. A sra. foi influenciada por este tipo de arte “serial”?
Ao descrever continuamente algo eu respondo sinceramente à minha fascinação por estes temas, por exemplo pelas vacas da minha vizinhança. Não tenho consciência de ter sido influenciada por artes visuais, mas você está me dando boas ideias de um caminho a ser seguido. Pesquisarei os artistas que você mencionou.
A sra. é leitora de haikais?
Sou leitora de um autor de haikais em especial, Bashô. Mas gostaria de ler outros escritores do gênero.
A sra. é leitora de filosofia, tema que aparece com frequência em suas histórias?
Não leio muita filosofia, ainda que eu o tenha feito no passado. Na faculdade, eu cheguei até a escrever um ensaio sobre o filósofo francês Henri Bergson e suas teorias sobre o humor.
Contos como “Insônia” e “O Caminho da Perfeição” poderiam passar tranquilamente por poemas. A sra. já publicou o mesmo texto em diferentes ocasiões como conto e como poema? O que faz com que estes contos sejam contos?
Enquanto houver algum elemento de narrativa num texto, acho que posso chamá-lo de conto. Prefiro tentar ampliar a definição de conto do que chamá-lo de poema. Mas não me importo se alguém considerar minhas histórias como poesia. Um dos meus contos já saiu no volume “Os Melhores Poemas Americanos”, o que me deixou contente. Mas eu comecei como autora de contos, não como poeta. Tendo dito isso, devo acrescentar que, sim, alguns textos que escrevo os faço com a intenção de que fossem mais poemas do que prosa.
Numa entrevista recente à Folha, o sul-africano J. M. Coetzee declarou que nunca se diverte ao escrever. A sra. consegue se divertir?
Tenho enorme prazer em escrever. Não sei se conseguiria chamar esse prazer de “diversão”, já que há um toque de leveza nesta palavra que não combina com o sério ofício de escrever. Mesmo escrever algo divertido é uma empreitada séria. Posso sorrir enquanto o faço e depois de ter a história pronta, mas escrevê-las é um trabalho duro e sério.