The thrill is gone
13/05/13 13:01“À sua maneira, Chet Baker era Rimbaud, James Dean e Elvis Presley, todos aos mesmo tempo”, já disse sobre o músico Ruy Castro. E tal como os Chet Bakers da poesia, do cinema e do rock’n’roll, o trompetista e cantor de Oklahoma teve um final trágico. Hoje completam-se 25 anos da data em que ele caiu/se jogou/foi jogado (até hoje não se sabe) de uma janela do segundo andar de um hotelzinho de Amsterdã, em frente à estação de trens locais.
Tal como noticiou a Folha, em texto de Ronaldo Evangelista (que pode ser lido aqui), há uma nova biografia do jazzista na praça, do britânico Matthew Ruddick. O Elekistão sugere a leitura de uma obra anterior, já publicada no Brasil, de James Gavin. À época do lançamento no país de “A Longa Noite de Chet Baker” (Companhia das Letras), entrevistei o autor. E aqui reapresento, em versão editada, esta conversa.
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Já com a existência repleta de sulcos, Chet Baker dava uma entrevista para um documentário quando o repórter lhe perguntou por que não colocava todas as suas espantosas histórias no papel. Em close, o rosto vincado do trompetista abriu um sorriso e disse: “Ninguém acreditaria”. Chet Baker tinha razão. Ninguém poderia crer na sua autobiografia por duas razões. Primeiro por ter sido mesmo sua vida um bocado inacreditável. Segundo porque, como bom mito que era, Baker alimentava com grossos fardos de pequenas mentiras a fornalha de sua mistificação.
Em 1994, um escritor norte-americano resolveu enfrentar o “ninguém acreditaria” lançado pelo músico e chafurdar nos trigos e joios da vida do artista, nascido em 1929 e morto numa sexta-feira 13 de 1988, despencado da janela do segundo andar de um hotelzinho em Amsterdã.
Foram sete anos de trabalho, mais de 500 entrevistas e viagens tricontinentais e James Gavin publicou com estardalhaço em maio deste ano nos Estados Unidos “No Fundo de um Sonho – A Longa Noite de Chet Baker”.
Essa montanha-russa com um dos jazzistas mais populares da história ganhou versão brasileira. A editora Companhia das Letras lançou as minuciosas 500 páginas da biografia.
“Não é um retrato nada agradável de se ver.” As palavras não são de nenhum resenhista do livro, mas de seu próprio autor, James Gavin, em entrevista à Folha.
Não há meios-tons nessa história. Tomando como marco zero o esvaziado enterro de Baker, ao qual compareceram 35 pessoas, Gavin mostra o passo a passo da transmutação de “pretty boy”, como o garoto de face apolínea era chamado na infância, em “cadáver cantante” (como o classificou o prestigiado “Village Voice”).
Os detalhes da longa viagem noite adentro de Baker são abundantes no livro. Gavin chega ao requinte de descrever, por exemplo, como funcionavam as seringas nos anos 40, antes da invenção da injeção de êmbolos deslizantes. E dos problemas com drogas, nos leva às nove prisões, às 2.500 multas de excesso de velocidade e aos roubos feitos pelo cantor de “Let’s Get Lost” para bancar seu vício.
Mas não é só o Chet perdido, ufa, que nos traz “No Fundo de um Sonho”. Gavin narra cada uma das glórias também, personificadas no nascimento do sopro gelado de seu trompete, anos 50.
Mas nem aí o biógrafo dá total refresco ao biografado. Ao falar do concerto que o catapultou ao estrelado, em 1952, com o já mito Charlie Parker, Gavin desmente versão que Baker consagra nas suas memórias -sim, ele disse que ninguém acreditaria, mas escreveu memórias, já lançadas no Brasil.
Não é verdade que ele teria sido selecionado em uma audiência com dezenas de trompetistas, sustenta. “Chet inventava muitas histórias, construía seu mito. Meu livro ajuda a separar o que era verdade ou não”, diz Gavin.
Abaixo, trechos da entrevista.
Folha – O que o sr. acha dos críticos de Chet Baker que dizem que ele nunca criou nada de original, só copiou Miles Davis?
James Gavin – Acho que não é bem assim, ainda que Davis tenha sido claramente o grande modelo de Chet. Ele próprio admitia que se não tivesse havido Davis talvez não houvesse Baker. Miles Davis foi um dos primeiros a tocar em um estilo econômico, sem mudanças abruptas, sem picos de som. Esse modo “cool” foi a base da música de Chet.
Folha – O sr. disse que sem Miles Davis não teria existido Chet Baker. Se Chet fosse feio e negro…
Gavin – Nós definitivamente não estaríamos tendo esta conversa. Se ele fosse bonito e negro não estaríamos tendo esta conversa. Se ele fosse branco e feio não estaríamos tendo esta conversa.
Folha – Mas ele teria algum papel na história do jazz?
Gavin – Isso é difícil de dizer. Muito da mística dele vinha do fato de ele ser branco, bonito e misterioso. Não creio que ninguém defenda a idéia de que ele tenha sido um mau trompetista, nem mesmo Miles Davis, que chegou a elogiá-lo, mesmo tendo ficado conhecido depois de Chet Baker, que surrupiara seu estilo.
Mas vale ressaltar que boa parte da popularidade de Baker veio de algo que não está relacionado a Davis: seu modo de cantar, muito próximo do que era sua cara, bonita, triste e distante.
Folha – O sr. já disse que em 1994, quando resolveu fazer o livro, tinha apenas dois discos de Chet Baker. Por que o sr. decidiu fazer uma biografia sobre ele?
Gavin – O documentário de Bruce Weber “Let’s Get Lost” foi fundamental para isso. Quando foi lançado, no final dos anos 80, o nome Chet Baker não estava em lugar nenhum na América. Ele era tido como uma relíquia do passado, só existia a idéia de alguém que tinha se destruído com as drogas. Era como uma piada.
O filme saiu em 1989, depois da morte misteriosa dele. Os dois, filme e morte, geraram outra vez uma movimentação em torno do nome dele na América. Em 1994 me dei conta de que a história fabulosa de Baker ainda não tinha sido narrada a fundo. E fui atrás.
Folha – Uma resenha sobre seu livro publicada no “The New York Times” sustenta que o sr. demonstra uma certa aversão ao seu personagem. O sr. concorda?
Gavin – Não concordo. Essa crítica do “NYT”, Michiko Kakutani, é famosa por ser uma víbora. Claro que não odeio Chet Baker. Mas fiz o máximo para não ser um biógrafo apaixonado. Busquei o tempo todo a neutralidade. Não havia necessidade de colocar minhas opiniões penduradas em histórias tão fortes como as do sobrevivente Chet Baker.
Folha – Seu livro mostra como Baker entrou na heroína anos depois de seus amigos. O que empurrou ele para isso?
Gavin – Eu acredito que ele mergulhou na heroína só depois de conhecer e ficar fascinado por um jovem pianista chamado Dick Twardzik, em 1955. Dick, um viciado, tocava de um modo tão mágico que acredito que ele associou isso à heroína. Baker estava mais ou menos apaixonado por Dick. Foi depois da morte por overdose do pianista, que, segundo rumores, Chet teria assistido, que a coisa aconteceu. Ele voltou para a América em 1956. E logo virou um viciado sério.
Folha – Quais marcas o sr. acha que Chet Baker levou de sua viagem ao Brasil, em 1985?
Gavin – Acho que ele não tinha a menor idéia do que era o Brasil, ele estava viajando por todo lado e não parecia ter nenhum envolvimento com os lugares que ia.
Chet, como é típico de um viciado, não tinha nenhuma relação com o que estava fora dele. Só pensava em a) conseguir drogas; b) conseguir tocar.
Ele não sabia nada sobre o Brasil, acho que nem sabia o que era bossa nova, gênero que de alguma forma se espelhou em sua música. O Rio de Janeiro, para Chet Baker, deve ter sido como Cleveland ou Detroit. Era qualquer lugar.