Os benditos malditos
23/05/13 10:55A capa da Ilustrada de ontem tratou do maravilhoso e sombrio universo dos escritores malditos, por conta do seminário “Malditos nos Trópicos”, que termina hoje na USP (como pode-se conferir aqui e aqui).
A equipe de repórteres da Ilustrada (Silas Martí, Raquel Cozer, Lucas Nobile, Gustavo Fioratti, Silvana Arantes e grande elenco) ouviu curadores, artistas, críticos, atores etc. sobre quem seriam seus malditos “favoritos” em diversas áreas da cultura.
A população elekistânica surpreendeu-se com alguns dos mais votados. O grande Nelson Rodrigues, por exemplo, lhes pareceu ter hoje muitos motivos para ser considerado um favorito, mas poucos para ser tratado como maldito (malgré seus gloriosos dias de “ovelha negra”).
Ao longo das consultas, a equipe da Ilustrada recolheu comentários interessantes sobre os “maudits”, que não foram publicados. O Elekistão reúne abaixo alguns deles.
“Esses artistas todos merecem meu respeito e favoritismo generalizado. Não dá para vê-los como malditos. Penso numa inclusão: colocar entre eles um padre católico negro, compositor do Brasil colonial, Maurício Nunes Garcia. Lendas correm a respeito dele, de que teria se encontrado com Mozart. Está entre minhas maldições musicalmente partilhadas.” (TOM ZÉ, músico)
“Procurei, em várias ocasiões restringir o conceito de poeta maldito, defini-lo com clareza. Uso dois critérios: um, não ser reconhecido em seu tempo – é a dualidade poeta maldito versus poeta olímpico, bem representada por Baudelaire versus Victor Hugo (meia dúzia de amigos no enterro de Baudelaire, um milhão de pessoas no de Victor Hugo – hoje, Baudelaire é mais estudado e lido que Victor Hugo, como poeta). Outro, visitar o inferno, relacionar-se com Satã ou Lúcifer; inverter a teologia e cosmovisão do cristianismo. Nesse aspecto, Rimbaud e Baudelaire são exemplares. Lautréamont é hipermaldito, declara-se como tal. Em Piva encontramos as duas qualidades. Demorou para ser aceito, só a partir de 2000. Quando Paranoia saiu, em 1963, não ligaram. E fez sua versão da visita de Dante ao inferno em 20 poemas com brócoli, de 1981, referindo-se à Divina Comédia, porém invertendo-a, percorrendo um inferno prazeroso, de saunas gay suburbanas. Mais malditos brasileiros? No romantismo, Junqueira Freire. Simbolistas, muitos, inclusive por terem lido e sido influenciados por ‘Les poètes maudits’, de Verlaine – o poema “Os Poetas Malditos”, de Maranhão Sobrinho, é alusão direta. Em Cruz e Souza, o tema está presente, e muito. Entre os modernos – mesmo sendo prosador, mas de prosa poética –, não hesito em incluir Campos de Carvalho nessa categoria.” (CLAUDIO WILLER, poeta e ensaísta)
“Só conheci um maldito no cinema brasileiro: Ozualdo Candeias. Da escrita do nome à obra extraordinária, na qual avultam filmes como ‘Zézero’, ‘Meu Nome É Tonho’, ‘As Rosas da Estrada’, tudo é autêntico e visceralmente antiburguês.” (CARLOS AUGUSTO CALIL, professor de cinema e ex-secretário de Cultura de São Paulo)
“Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Porque sempre fugiram do lugar-comum da música, sem se preocupar se seriam entendidos.” (EMICIDA, músico)
“Os nomes mais óbvios, como Gregório de Matos e Glauco Mattoso, vão perdendo a condição de malditos na medida em que passam a ser associados ao rótulo. É uma dinâmica própria das categorias de ruptura e radicalidade pós-românticas, que também acomete conceitos como o de vanguarda. Eu destacaria, então, entre os escritores do passado, Luiz Gama e, entre os contemporâneos, Fausto Fawcett. Não me parece casual que nosso maior poeta satírico oitocentista, na linhagem de Gregório de Matos, seja também nosso primeiro grande escritor afro-descendente. Sua posição ainda marginal no cânone da literatura brasileira lhe garante a condição de maldito por um bom tempo. Fawcett escreveu um romance que me parece genial: Santa Clara Poltergeist (1990) é um mergulho na linguagem da cultura de massas que se situa na tradição de outros escritores que também poderiam ser considerados malditos, como José Agrippino, autor de Panamérica, de 1967.” (IDELBER AVELAR, professor de literatura e crítico)
“O termo ‘maldito’, entre aspas mesmo, foi muito usado nos anos 1970 para classificar artistas que foram geniais, mas considerados pouco comerciais para as gravadoras. Eu cito três que foram considerados ‘malditos’, mas eu os compreendi muito bem: Jorge Mautner, Jards Macalé e Luiz Melodia” (NANDO REIS, músico)
“Pensei em um nome, não é necessariamente o mais significativo, e a escolha é deliberada, mas quase nunca é citado, pois não transitou no eixo Rio-SP. É Jamil Snege. Penso sobretudo no surpreendente ‘Como Eu se Fiz por Si Mesmo’, texto desconcertante pela mescla de gêneros e desconcertantemente agudo no tocante à desconstrução que um escritor de província (assim ele se caracteriza com grande dose de autoironia) faz de si mesmo, de suas ambições e da vida literária, em sentido amplo. A imaginação do narrador, com toques surrealistas, se concretiza por meio de uma linguagem ácida e precisa como poucas na literatura braaileira do século 20. Também citaria José Albano, poeta nascido no Ceará e um dos homens de letras mais fascinantes da cultura brasileira. Poliglota e erudito, excêntrico em seu comportamento, cultivou uma poesia irregular, com momentos extraordinários e equívocos igualmente inesquecíveis. Foi à Grécia, por exemplo, para reler Homero, no original, claro, no Partenon. Sua obra precisa ser relida com urgência: sua ambição de apropriação de tradições diversas esteve sempre muito acima de sua capacidade de dar forma a suas pretensões literárias. Mas o horizonte que descortinou somente foi recuperado décadas após sua morte. (JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA, professor de literatura e crítico)
“Não considero maldito nenhum dos artistas considerados maldito. Esse termo veio por parte da indústria, das grandes gravadoras. Alguns artistas não se enquadravam na indústria e a indústria não os gravava. A arte deles independia da adaptação ao mercado. Daí veio o rótulo. Entre esses artistas-heróis, vulgo malditos, Itamar Assumpção é uma grande referência para mim. Mas não posso deixar de citar Jards Macalé, Walter Franco, Jorge Mautner e Luiz Melodia. Benditos todos!” (TULIPA RUIZ, música)
“Meu maldito escolhido é Roberto Piva, porque permaneceu fiel ao ‘elogio das margens’ até o final da vida, pagando um alto preço por sua ousadia. Foi um poeta notável, que chutou o pau da barraca e se manteve no relento, recusando os projetos edificantes que transformam a literatura em utilidade pública. Talvez tenha sido nosso último maldito.” (ELIANE ROBERT MORAES, professora de literatura e organizadora do colóquio “Malditos nos Trópicos”).
“Não gosto da ideia de ‘maldito’ para designar autores. Embora seja uma forma (um rótulo) usual de valorização por antagonismo ao cânone, de modo geral, infelizmente, tende a reforçar o estigma que denuncia. É o caso típico da Hilda Hilst: é celebrada como maldita, e, por isso, como autora ‘avançada’, que vale a pena citar, mas, ao mesmo tempo, esse tipo de celebração recorta a obra dela num viés escandaloso que empobrece muito o conjunto. Quando a editei, fiz questão de evitar qualquer segmentação ou destaque da obra dita pornográfica em contraste com o conjunto, e fiz o mesmo com as edições que fiz do Roberto Piva e do Bruno Tolentino, outros desses autores que supostamente lucram com o rótulo de malditos. Contudo, bem ao contrário, são frequentemente mal celebrados porque ficam reduzidos a esse nicho superficial em termos críticos, e geralmente oportunista em termos comerciais. Não parece ser o caso, entretanto, desse seminário, conduzido por gente séria.” (ALCIR PÉCORA, professor de literatura e crítico)
“Há quem diga que o maldito se amaldiçoa antes de todos, mas não acredito nessa hipótese. No caso de Plínio Marcos, o rapaz de Santos, que torcia para o Jabaquara, palhaço Frajola, ator que roubou a cena na novela ‘Beto Rockfeller’, dramaturgo do neorrealismo marginal, não foi diferente. Quem o amaldiçoou? Peças como ‘Barrela’, ‘Dois Perdidos Numa Noite Suja’, ‘Navalha na Carne’, foram sucesso de público, um estardalhaço na cultura nacional, um incômodo para a ditadura militar. Ele foi covardemente massacrado pela censura e não se encaixou nos padrões da industria cultural, desde então foi amaldiçoado. Sempre esteve perto de outros ícones da marginalidade, os sambistas, os artistas, os trabalhadores de rua, em suma, o povo. Plínio permanecerá maldito enquanto a população brasileira for marginalizada. É uma maldição que se retro-alimenta. E o grande maldito do Brasil é o próprio país.” (KIKO DINUCCI, músico)
“Evidentemente há um mundo de diferença entre a estilização do sofrimento como modo de produção da genialidade do 19 e o virtuoso da língua do rap brasileiro que foi Sabotage. A inserção nesse clube dos malditos é um pouco uma provocação. Mas essa provocação pode render. Baudelaire ao construir o modelo do maldito em sua homenagem a Edgar Allan Poe define o paradigma do maldito como sendo aquele que recusa a ditadura da opinião da maioria, na democracia dos Estados Unidos. O maldito é uma singularidade negativa. Por outro lado, Sabotage é uma figura coletiva; ele transcreve em sua biografia uma série de lugares comuns da marginalidade urbana brasileira e mundial, inclusive o seu assassinato em um ajuste de contas, no auge de uma carreira que apenas deslanchava e que prometia, e justamente quando parecia – digo bem, parecia – ter se desligado inteiramente do mundo do narcotráfico onde se formara. Sabotage se insere em um grupo de rappers brasileiros que adaptam o vernáculo mundializado e racializado da denúncia dos guetos norte-americanos ao Brasil. No entanto, a língua que usa e cria, chega a um nível de singularização e de codificação que mostra o funcionamento de quase um idioleto, uma língua particular. Nesse sentido ele simboliza a nova realidade das cidades contemporâneas segmentarizadas, a cidade dos ‘enclaves fortificados’ e das favelas, periferias e comunidades segregadas. Lê-lo agora de novo para preparar essa comunicação me dá vontade de passar um tempo no Canão e me aprofundar no conhecimento dessa língua do Sabotage.” (JOÃO CAMILLO PENNA, professor de literatura e ensaísta)