O choque-mate de Mr. Elliott
06/09/13 15:34O fotógrafo Elliott Erwitt acaba de fazer uma jogada arriscada, como a imagem abaixo comprova.
Mestre da fotografia em branco e preto, ele lançou esta semana seu primeiro livro só com imagens coloridas. É bem verdade que, escondido sob o codinome de André S Solidor, ele havia publicado um volume repleto de cores, chamado “The Art of André S Solidor” (2009), com imagens como esta maravilha abaixo. Mas Erwitt é Erwitt e Solidor é Solidor.
Os dois têm em comum a mesma editora. A casa alemã teNeues, responsável pela compilação do exótico Solidor, é que lança agora o volume “Kolor” (disponível em versão padrão, por 125 dólares, ou com uma cópia assinada por Erwitt, por 2500 pratas). Não deve ter sido moleza realizar a seleção das imagens.
Aos 85 anos, o mestre da agência Magnum tinha um acervo de mais de 500 mil fotos coloridas, feitas com filmes Ektachrome e Kodachome, como as fotos abaixo.
Antes que revelasse este seu mundo full color, Erwitt esteve em São Paulo, em 2009, para uma palestra e uma entrevista. Escrevi o textinho abaixo, que recompartillho com os leitores do Elekistão.
Ele prefere os quadrúpedes
Era evidente o espanto nos olhos daquele vira-lata barbudinho, cor de farofa, que chafurdava os sacos de lixo na esquina da Martim Francisco com a Martinico Prado. “Eu não acredito!”, grunhia, enquanto tentava se recompor, diante da visão do senhor de cabelos brancos, suspensórios tricolores e sandália papette. “Não pode ser que Elliott Erwitt esteja aqui em Santa Cecília”, dizia seu rabo desajeitado, espanando de um lado pro outro, ao passo que se posicionava gisellebundchenmente para um retrato.
Talvez por estar sem a câmera Leica engatilhada na mão direita ou, mais provável, inebriado pela minha promessa de um suculento polpettone, que ele viria a enfrentar com louvor no vizinho Jardim de Napoli, Erwitt perdeu a pose daquele carismático saco de pulgas paulistano.
É raridade. Desde uma tarde fria de 1946, quando se deitou numa calçada de Manhattan para retratar um chihuahua paramentado com uma roupinha de lã, nenhum bípede fotografou cães tão bem quanto ele.
Nesta, que veio a ser a primeira das centenas de imagens clássicas capturadas por Mr. Erwitt, a ideia nem era fotografar o animalzinho de olhos esbugalhados. Recém-saído do exército americano, após a Segunda Guerra, Elliott havia sido contratado por uma revista semanal de Nova York para fazer um editorial de sapatos femininos. O ex-recruta, de 18 anos, pouco entendia de scarpins, sapatilhas e sandalinhas. Mas não titubeou. “Logo pensei nos cães. Ninguém vê tantos sapatos como eles”, relembra. Elliott Erwitt já demonstrava ter a qualidade inequívoca para um grande fotojornalista: faro.
O olfato apurado, não demorou muito, o conduziu à melhor agência fotográfica de todos os tempos. Chegou à Magnum Photos em 1953, convidado por um sujeito chamado Robert Capa, que fundara a agência seis anos antes com outro punhado de comparsas, entre eles Henri Cartier-Bresson.
É em parte por conta da mesma Magnum Photos que o fotógrafo há mais tempo em atividade da agência veio a São Paulo em setembro. Aos 81 anos, Erwitt visitou a capital paulistana para falar do ofício. As loas ao fotógrafo também foram rendidas com uma exposição de 60 de suas fotografias.
Há bem mais do que cãezinhos à mostra. Além de buldogues, terriers, poodles e chihuahuas, o velho Erwitt fotografou outros animaizinhos mais selvagens, como, digamos, Marilyn Monroe. “Marilyn? Ah, ela não era nada de mais. Em termos físicos ela era surpreendentemente pouco atraente. Mas era muito simpática e sensível. Muito inteligente”, conta. Então tá… Ele a fotografou uma porção de vezes. Numa de suas fotos mais conhecidas, a atriz aparece rodeada de uma turminha que inclui seu ex-marido Arthur Miller, John Houston, Montgomery Clift e Clark Gable. Aparentemente Erwitt nunca foi de fazer festa em torno de figuras conhecidas. E eles as fotografou às matilhas. De Che Guevarra a JFK, de Marlene Dietrich a Humphrey Bogart, de Yukio Mishima (pouco antes de cometer seu famoso harakiri) a Simone de Beauvoir. “Fotografar ‘celebridades’ é exatamente como fotografar ‘não-celebridades'”, expressa em seu antifotografês confesso. “A questão é achar o enquadramento correto e tentar encontrar algo único na pessoa. Nunca me intimidei com ninguém. Sempre pensava que mesmo o mais célebre dos seres sempre escova os dentes, como eu, a cada noite antes de ir para a cama.”
O fato de ter tido uma infância levemente cinematográfica talvez ajude. O norte-americano Elliott Erwitt não nasceu nos Estados Unidos, e não se chamava nem Elliott nem Erwitt. Sua cidade-natal foi Paris e a certidão de nascimento, de julho de 1928, leva o nome Elio Romano Erwitz. O pai era estudante de arquitetura, nascido em Odessa, na Ucrânia. A mãe vinha de família rica de mercadores de Moscou. Os dois se encontraram na mítica Trieste, na Itália, e foram para a França, onde nasceu o nosso personagem. Com ele ainda criança, mudaram todos para Milão, onde “Elio” viveu até os 10 anos. “Graças ao Mussolini é que eu sou americano”, brinca. A família Erwitz (depois Erwitt) escapuliu por pouco: tomaram o último navio a sair da Itália para os EUA, dia 1º de setembro: dois dias antes que a Guerra fosse declarada.
Na chuvosa semana em que chegou a São Paulo, Erwitt completava sete décadas de Estados Unidos. Em seu apartamento, em um vistoso prédio bege em frente ao Central Park, em Nova York, vive com a mulher, o cão terrier Sammy e itens como um alce que trouxe do Alaska, uma estátua em tamanho real de um policial japonês, uma coleção de buzinas de bicicletas, um…
As bugigangas ajudam a ilustrar um dos traços mais marcantes da fotografia de Erwitt: seu humor. Na concepção dele, fazer as pessoas rir é um dos maiores feitos que alguém pode conseguir. Mais invejáveis, para ele, são só os que, como Charles Chaplin, conseguem alternadamente fazer as pessoas chorar e rir. O humor de Erwitt não é propriamente o das videocassetadas. É manso; por vezes lírico, por vezes irônico. De todos os grandes fotógrafos do século 20, clube do qual tem carteirinha, ele talvez tenha sido o que mais tenha feito as imagens sorrir. Mais recentemente chegou a investir na gargalhada fotográfica. Mestre das imagens em preto e branco, bem-humoradas, mas contidas, ele fez nascer um heterônimo chamado Andre S. Solidor, por meio do qual libertou suas imagens mais coloridas, kitsch e antijornalísticas (encenadas e manipuladas por computador). Essas acabam de ser reunidas no imponente livro “The Art of Andre S. Solidor”, da editora alemã TeNeues.
Dizem que fora dos livros, das fotografias e filmes (já que também assinou documentários e filmes mais comerciais para TV) Elliott Erwitt é um sujeito casmurro. Sim, e não. “Você tem ideia de quantos países já visitou?”, foi uma pergunta infeliz do sobrescrito, durante a degustação de polpettones. Erwitt, que em seus mais de 30 livros (oito deles só sobre cachorros), publica imagens que fez em Auschwitz e em Burma, em Tóquio e na Argentina, na Nova Zelândia e no Irã, responde candidamente: “Já fui a quatro países”. Faz uma pausa e complementa: “É, talvez mais”. Entre esses “quatro países” inclui-se o Brasil, que ele visitou mais de uma dezena de vezes, seja para registrar Brasília em construção, o sequestro de um navio na costa pernambucana, as ladeiras do Pelourinho ou as praias do Rio e de Búzios. “Elliott”, pergunto, “você deve achar as nossas praias muito bonitas, já que as visitou tantas vezes, não?” “É, as praias são bonitas. Mas não é por isso que eu vinha sempre ao Brasil. Era por causa de uma garota brasileira espetacular”. Mestre Erwitt sabe desconcertar.
O desconcerto é um de seus modus operandi de fotografar: mais aparente quando se trata dos cães. Em muitos de seus retratos caninos os animais estão saltando, latindo, sorrindo, uivando. Sabe por quê? Um akita que fazia seu trottoir nos Jardins pode dar seu testemunho. O cãozinho passava pela Alameda Franca, em frente à galeria 8 Rosas, quando foi surpreendido por latidos bravos. Vinham de um senhor de cabelos brancos e suspensórios. É. Elliott Erwitt late, e late alto, para os cachorros com os quais cruza no caminho. Late, e depois os fotografa. Bem, não é sempre que o faz. Para desgosto de um vira-lata cor de farofa, de Santa Cecília.