O pescoço de Orwell
25/09/13 18:05Uma bala perfurou a garganta de George Orwell na madrugada de 20 de maio de 1937, em Huesca, no nordeste da Espanha. O escritor britânico, nascido na Índia, militava numa organização de origem trotskista que combatia a tenebrosa trupe do general Franco. O lenço que ele levava amarrado ao pescoço ficou manchado de sangue. No próximo dia 3 de outubro, o tal pedaço de pano estará numa vitrine da casa de leilões Dreweatts & Bloomsbury, em Londres.
Ele integra o lote 239, com quatro lenços que pertenceram ao autor de “1984”. Podem ser seus por (estima-se) algum valor entre R$ 2800 e R$ 4300.
O Elekistão não investiria em lenços levemente manchados de sangue. Sin embargo, recomenda aos que dispõem de R$ 52,50 que comprem o recém-publicado livro “Uma Vida em Cartas”, do mesmo George Orwell, lançamento da Companhia das Letras.
No volume de correspondências, que reúne cartas escritas entre 1911 e 1949, é possível ler sobre galinhas (não as que protagonizam seu célebre “A Revolução dos Bichos”, mas o par de galináceos que ele criou quando viveu no Marrocos), sobre Napoleão (o imperador, não a tartaruga), sobre conhaque e, de raspão, sobre o tiro que Orwell levou no pescoço quando combatia o fascismo na Espanha.
Orwell fala bem pouco sobre o episódio, também abordado en pasant em seu livro “Homenagem à Catalunha” (publicado aqui como “Lutando na Espanha”, pela Globo Livros, atualmente esgotado). Sua mulher, Eileen, que também estava no front, limita-se a mandar um telegrama aos pais do escritor dizendo: “Eric levemente ferido excelente progresso manda amor nenhuma necessidade de ansiedade Eileen”.
Eric, vale dizer, era o nome real do autor. George Orwell era o pseudônimo de Eric Arthur Blair, sujeito que, mesmo nas cartas, pouco expunha de sua vida pessoal (e assim era o criador do termo Big Brother, vejam só).
Como expressa o jornalista e escritor Mario Sergio Conti, em texto sobre os critérios usados por ele na seleção das cartas do volume brasileiro (compiladas originalmente por Peter Davison), “as cartas de Orwell mostram um escritor pouco parecido com boa parte dos de hoje”.
“As suas observações não tem nada de mesquinho. Ele não faz fofocas literárias, não imagina uma carreira nas letras, não se promove, não quer ganhar dinheiro, não sabe o que é moda”, continua Conti. “Sobrevive mais que modestamente, passa frio, anda a pé, não se queixa de nada. Faz isso para estar junto com os pobres e trabalhadores, para entendê-los, e para viver na prática as suas ideias _ e ser um escritor fiel ao seu tempo e a si mesmo.”
Post-scriptum: No mesmo leilão, que terá como momento áureo (estimam os leiloeiros), o pregão de um exemplar original de “Pride and Prejudice”, de Jane Austen (pode valer até R$ 90 mil), há duas primeiras edições de Orwell, incluindo este acima, de “A Revolução dos Bichos”, lance mínino de R$ 1800.
Leiam de Orwell A linguagem e a política inglesa. Tudo o que se pode falar sobre manipulação política está ali. Como escrever bem, ser compreendido e sedutor na escrita também.