Erguei as sobrancelhas
25/02/13 08:00Don DeLillo nunca foi um xiita da reclusão – na escala de eremitismo que vai do zero de Paulo Coelho ao 10 de Thomas Pynchon ele ficaria no máximo com um 7. Mas uma entrevista coletiva não era uma experiência corriqueira para ele.
E eis que, na primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, no já vetusto ano de 2003, Mr. DeLillo foi convidado para falar para um grupo de jornalistas.
A Flip ainda era um festival pequenino, ele já havia tomado uma caipirinha, não eram tantos jornalistas assim. Mestre supremo da chamada Escola Americana de Ficção Paranoica (como diz o autor de entrevista com ele na “The Paris Review”), o autor de romances maravilhosos como “Ruído Branco”, “A Artista do Corpo” e “Submundo” (que nunca consegui ler, mas que parece maravilhoso e acho que pega bem elogiar) não perdeu a oportunidade de brincar com nossos delírios sistematizados. Encarou os jornalistas, pigarreou e disse: “Esta é minha primeira coletiva de imprensa. E entrevistas coletivas começam sempre com grandes notícias”. Cruzou e descruzou as pernas. “Então queria comunicar a vocês que nesta manhã, dia 8 de julho de 2003, os Estados Unidos invadiram a Síria.”
Para meu espanto, e certamente para o de diversos colegas ali (e certamente para o maior espanto de todos, o de DeLillo), ninguém riu. Um silêncio constrangedor seguiu-se ao “anúncio”. E vi ao menos um rapaz sair da sala (na minha fantasia, para ligar para o seu jornal e avisar o “furo de reportagem”).
Agora a pergunta é: por que mesmo estou falando de Don DeLillo? Ah sim, talvez porque era a primeira vez que ele fazia uma determinada coisa (estar numa entrevista coletiva), porque ele a fazia com um grande atraso em relação a seus pares (não fiz uma pesquisa, mas acredito que àquela altura Philip Roth e Ian McEwan já deviam saber o caminho das pedras), e porque, apesar de seu esforço, os seus poucos interlocutores o encararam como se observassem uma samambaia.
Naturalmente, não cabemos, DeLillo e eu, em nenhum tipo de intersecção, mas imagino que eu me sinta mais ou menos como ele ao escrever este “poust”. É o primeiro que escrevo na vida. Nunca tive um blog: o mais próximo que cheguei a isso foi ter um bloc – um “blog analógico”, mais conhecido como bloco de mão, onde eu anotava “posts” e escrevia no rodapé em que horário estava “publicando” aquela nota (devo ter escrito duas ou três). Em relação a muitos amigos, estou uns quinze anos atrasado, e já está fora de moda ter um blog (só eu e Yoani Sánchez parecemos interessados). Portanto, não espero dos poucos interlocutores nesta sala mais do que o olhar esgazeado com o qual brindaram o pronunciamento de Don DeLillo.
Seja como for, não tenho invasão à Síria alguma para anunciar (invasão esta que, dez anos depois, nem soaria tão absurda): o Elekistão é uma monarquia absolutista, mas de um absolutismo razoavelmente pacato. É praticamente um reino-edícula, um império-puxadinho, um mini-vizirato com a única função de reunir e tornar públicas algumas observações escritas de seu líder e fundador, no caso, eu.
Pronto. Podem erguer sobrancelhas.
Post-scriptum: em notas vagamente relacionadas, o Elekistão recomenda duas leituras: a de um ótimo relato de Julian Barnes sobre esta primeira e inesquecível Flip, que não deixa de mencionar o “affair DeLillo”, e de uma breve reportagem de autor pouco significativo sobre um passeio de barco com Eric Hobsbawn, Hanif Kureishi e o personagem deste “poust”.